quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Amêndoas e mel

Dança flamenca

Não sei quantas vezes li o livro “España Virgen” do escritor norte-americano Waldo Frank. Ele, como a tantos outros aconteceu, ficou enfeitiçado pelo corpo, que é a terra e pela alma, que é povo daquele país encantador. Corpo e alma que absorvem e fascinam qualquer forasteiro que passe por ali. Que o digam Washington Irving quando escreveu sues encantadores “Contos de Alhambra”, ou Rodriguez Larreta em “La Glória de Don Ramiro”, ou Ernest Hemingway em “Por Quem os Sinos Dobram”. Como eles, outros escritores famosos lá viveram e escreveram sobre a luta, o encanto, o caráter, o fatalismo e a alegria de viver de um povo, de uma raça súmula de tantas, que parece nascer e crescer como nascem e crescem os robustos carvalhos de suas florestas montanhosas.

Não sei a origem da palavra flamenco aplicada em Andaluzia mais que no resto da Espanha. Costumam dizer: - “Hoy estás muy flamenco”, quando a pessoa aparece disposta a expressar um desejo de intimismo. Eu diria apenas que ela se confunde com gitano, pois todo gitano é flamenco e todo flamenco é gitano. Seria um estado de espírito, graça, personalidade, malícia, astúcia, atitude e particularmente desejo. Nesta raça andaluza existe orgulho em ser gitano e o orgulho aumenta quando o gitano é flamenco. É alguma coisa que transcende pensamentos de divindade, superstição e crença. Nasce com a criatura por atavismo e conserva-se a vida toda como força espiritual. A dança flamenca é individual e espontânea no exercício do matriarcado, e foi a mulher que a sublimou, como expressão de dor e de alegria ao mesmo tempo, para distrair seu homem.

Waldo Frank descreve a dança flamenca de modo admirável e é de sua forma literária que interpreto a meu modo, claro está que pobremente, o que ela significa. A dançarina flamenca é uma coluna articulada por uma alma. Plasticidade vivente em que funcionam todos os sentidos com a dadiva do olhar e as mãos ondulantes. No corpo espigado repousa a cabeça em perfeito equilíbrio. Seus cabelos são negros e brilhantes como a mirada penetrante de seus olhos. Os braço redondos decoram a moldura magnifica dos firmes ombros. O corpo, torso de vestido ajustado, permanece ereto, enquanto os pés rodopiando, em passos curtos e cadenciados, as saias de longos panos desenham no espaço, pelo movimento ritmado, curvas parabólicas que se entrecruzam e formam contraste com a rigidez do corpo. Os braço flutuam languidamente, molemente sobre a cabeça e as castanholas repicam o seco comentário que acompanha o rasgado das guitarras. A bela e boa bailarina flamenca não é magra, pelo contrario, ela é robusta e larga de pélvis, ereto e forte o peito e angulosas e marcadas as formas do rosto moreno. Disse Waldo Frank que a “bailaora flamenca carece de erotismo sexual, e embora caída, é mais matrona que rameira”.Os vestidos que usa são belos de forma e de cor, fartamente pesados e completos, para despertar desejos e emoções. Esta mulher morena, flamenca, gitana, ao finalizar a dança, no momento exato de ouvir-se a ultima nota musical, transforma-se em estatua, levanta a cabeça e olha para o infinito como querendo dizer: “Esta soy yo”. Entretanto ela é mãe, mestra e sacerdotisa, ela é a força e a chama permanente de muitos mundos antigos que assaltaram e povoaram a península. Ela é o espirito estratificado de milênios. A dança flamenca, dentre o folclore espanhol, riquíssimo, diferente em cada região, é a mais divulgada pelo mundo. Espanha é mais conhecida pelas touradas e pelo flamenquismo, mais que pela variada e multicolorida manifestação popular das demais regiões. Creio mesmo que isso nada importa, porque realmente em Andaluzia vive o povo mais extrovertido da península. Sua filosofia é a de estar alegre em permanente estado de graça, como terapêutica saudável para si e para dar e vender. A dança flamenca, que é a dança gitana, é uma expressão soberana.

Retirado do livro Amêndoas e Mel – crônicas de Espanha, de Fernando Corona.